Dia de Caça às Bruxas
 



Contos

Dia de Caça às Bruxas

Vitória Zajkowski


A exceção é segunda-feira. Assim como um museu, o parquinho não abre. Porém hoje é sexta, e assim como todas as sextas desde setembro, Vanda cruza atarantada o parque da Redenção. Desvia dos piquetes políticos, a cara colada ao próprio peito, os olhos fugindo do asfalto enfeitado de santinhos. A maioria terminada em sete anos de azar. Vanda passa correndo pela mercenária, o temor de ler qualquer slogan vazio lhe retira o fôlego. O pavor das falas caricatas, até mesmo o som da Voz do Brasil, lhe causa profunda náusea. Detesta a realidade, e da irrealidade ganha o seu pão. Porém hoje sua fuga não lhe rendera nada.

Ao contrário dos dias mais nublados de anos mais ociosos, hoje é uma sexta-feira agitada e ensolarada. Nem mesmo o vento de finados ousou estragar as ruas dragadas pelo azul e vermelho, varridas por multidões cada vez mais alteradas. A véspera dos dias das bruxas não é nem um pouco párea aos ânimos inflamáveis do segundo turno da eleição. O resultado é um parco movimento no parquinho, principalmente no trem do terror. Vanda passou o dia fantasiada de cadáver, olhando para as paredes enferrujadas. Nenhum adolescente chorou hoje, nenhuma criança vestida de zumbi agarrada à mãe soluçou. Hoje, nada de contorções para Vanda, apenas atirar conversa fora com um vampiro deprimido e um patético palhaço sangrento.

Bate o ponto mais cedo, às dezoito e uns quebrados. E embora o dia tenha se arrastado e aturar as piadas mórbidas do palhaço lhe tirassem um tanto de paciência, a expectativa de chegar mais cedo em casa amolece todo o seu mal humor. Vanda se desvencilha dos panfletários, ignora suas mãos esticadas cheias de santinhos, corre quase saltitante em direção à parada, o alívio de não ter pego nenhum papelzinho lhe corando as faces. Cruza a João Pessoa, nem olha para a sinaleira. Talvez ainda pegasse a linha 263 das dezoito e trinta. Vanda sorri e acende um cigarro. Ri por dentro, quando uma senhorinha olha para suas mãos manchadas de vermelho, as sobrancelhas arqueadas. Vanda faz questão de soltar uma baforada de cigarro em sua direção.

A parada vai enchendo, um grupo de jovens engravatados com suas cervejas verdes se mistura às senhoras de saias longas, um grupo de adolescentes atira-se a todo instante para o meio da faixa enquanto crianças vestidas de bruxas e vampiros atira santinhos umas nas outras. As senhoras de saias longas olham enviesadas para as crianças, as cabeças balançando como falecidos cachorrinhos dos taxistas, e os lábios crispados formando um arco digno de catedral. O 263 chega, a maioria embarca, as senhoras e os jovens com comportamento de criança se acotovelam e chegam à catraca. Vanda se espreme, consegue um assento e permite até mesmo meio sorriso ao rapaz com quem divide o banco, um engravatado de cabelo lambido. Poderia passar por filho de político. O ônibus arranca, Vanda perde-se nos pensamentos, os olhos fixos nas lojas de 1,99 com suas abóboras de Dia das Bruxas misturadas a colares havaianos de plásticos. Porém, quando o ônibus perpassa a esquina democrática, seu olhar se enterra para dentro do ônibus, não aguentaria a maré azul e amarela cheias de números sete.

Vanda tenta olhar para fora, porém cada vez que o faz, seus olhos encontram estrelas, setes ou símbolos anárquicos. A mulher sente as mãos tremerem e um suor frio lhe escorre pela testa, se pergunta até que ponto suas paranoias a comandam. Porém logo se convence que é bobagem, afinal o engravatado ao seu lado também transpira e treme, enquanto conversa com um garoto de moletom surrado. Vanda cruza seus olhos com o menino, ele enrijece e desvia, a mulher sente as costas começarem a encharcar. Ela levanta, pede para abrir a janela. “Tá emperrada”, o cobrador grita. O suor aumenta enquanto ela se arrasta cada vez mais para fora do banco, o calor tencionando seu pescoço. Olha para fora e vê um cartaz de legenda, uma abóbora no lugar da cabeça do candidato, uma vassoura no lugar do microfone.

Então Vanda sente o corpo amolecer, cruza o olhar mais uma vez com o garoto do moletom, mais um tremor. O cobrador reclama do presidente, uma senhora chispa. Alguém diz perto dela que o presidente vai desistir da reeleição, o cobrador fala que vão matar o vice, uma senhora assente. Uma abóbora de plástico rola pelo corredor quando o ônibus embica em direção da Orfanotrófio. O engravatado derruba Vanda do banco, alguém grita, o motorista freia. O adolescente se ergue, ela não vê, encara um panfletinho do presidente. Uma arma na mão do presidente, uma arma na mão do adolescente. O adolescente é atrapalhado, a arma cai no chão, todo mundo se ergue contra ele. “Mata ele, mata ele”, diz a beatinha. Vanda continua atirada ao chão, olhando para a arma do presidente. “Mata ele”. Surram o adolescente. Mas o engravatado também está armado, ele parece filho de político, todo empapado.

Vanda não consegue se erguer, fecha os olhos. Também não quer ver. “Mataram... mataram o moleque...” A voz do cobrador se ergue, Vanda abre os olhos, vê a arma do presidente ali, atirada no chão empoeirado do ônibus. Hoje é sexta-feira. Vanda trabalha no trem do terror. Porém, hoje, Vanda não é atração, é plateia.


***

Vitória Zajkowski é estudante de moda, mas há sete anos desenvolve sua escrita autoral se arriscando nos campos do terror e da fantasia. Natural de Viamão/RS, escreve histórias que trazem personagens femininas em universos caóticos, situações cotidianas em contraste com devaneios e a constante luta pela igualdade de gêneros, raças e orientações sexuais. Tendo como referência literária Carlos Ruiz Zafón, através das suas temáticas, retratos sociais e a morbidez das ações humanas. Participa do Curso Livre de Formação de Escritores da Editora Metamorfose.


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